Mais um bode expiatório?

Você pode ser o próximo cancelado

A atmosfera na sala de reuniões era densa, carregada de uma tensão palpável. O relatório sobre a queda nas vendas do último trimestre estava sobre a mesa, como um fantasma que assombrava a equipe. 

Olhares se cruzavam, cheios de desconfiança e acusações veladas. 

Era preciso encontrar um culpado, alguém que pudesse ser responsabilizado pelo fracasso em nome da recuperação da empresa.

A queda nas vendas era, na verdade, um sintoma de problemas mais profundos: falhas de comunicação, liderança ineficaz, processos obsoletos, entre outros. 

Mas, em vez de encarar a complexidade da situação, o grupo optou pelo caminho mais fácil: encontrar um bode expiatório. E o alvo perfeito se materializou na figura de Anna, a estagiária recém-chegada à equipe. Tímida, insegura e com pouca experiência, Anna se tornou o alvo ideal para as frustrações e inseguranças do grupo.

A narrativa se construiu de forma sorrateira, com pequenas insinuações, críticas veladas e atribuições de culpa cada vez mais frequentes. 

Anna, despreparada para lidar com a pressão e o jogo de poder, se isolou e se tornou ainda mais vulnerável. 

A demissão se tornou inevitável, um ritual de purificação para exorcizar os males da empresa. Anna saiu carregando o peso da culpa, enquanto o grupo se congratulava pela "solução" encontrada.

Mas é claro que a alegria durou pouco. 

Os problemas persistiram, as vendas continuaram caindo e a tensão voltou a pairar sobre a equipe. Olhares se cruzavam novamente, cheios de desconfiança e medo. Era preciso encontrar um novo culpado, um novo bode expiatório para ser sacrificado em nome da sobrevivência da empresa. 

O ciclo de violência se repetia, e a tragédia se anunciava no horizonte.

Desde sempre, a humanidade se depara com a recorrência de conflitos, violências e crises que parecem inerentes à nossa natureza social. 

Em diversas culturas e épocas, observamos um padrão perturbador: a busca por um bode expiatório, um indivíduo ou grupo que é injustamente responsabilizado pelos males da comunidade e sacrificado em nome da paz social.

Na Grécia Antiga, o ostracismo era uma prática comum, onde cidadãos considerados ameaçadores à ordem pública eram banidos da cidade por voto popular. 

No Império Romano, cristãos eram perseguidos e lançados aos leões no Coliseu, acusados de desestabilizar o Império com suas crenças. 

Na Idade Média, judeus eram frequentemente perseguidos e massacrados, acusados de envenenar poços e causar doenças. 

Esses exemplos históricos demonstram como a figura do bode expiatório se repete ao longo do tempo, assumindo diferentes rostos e justificativas, mas sempre com o mesmo objetivo: canalizar a violência coletiva para um alvo específico, criando a ilusão de resolução de conflitos e restauração da ordem.

René Girard, filósofo e antropólogo francês, dedicou sua vida a desvendar os mecanismos por trás do bode expiatório, desenvolvendo uma teoria que expõe as raízes da violência humana e o papel do sacrifício na construção das sociedades.

Ele argumenta que a violência surge do desejo mimético, ou seja, da tendência humana de imitar os desejos dos outros, o que leva à rivalidade, ao conflito e à necessidade de encontrar um inimigo comum para unificar o grupo. 

O bode expiatório, neste contexto, funciona como uma válvula de escape para a violência social, uma vítima inocente que é sacrificada para apaziguar os ânimos e restaurar a coesão social. 

Girard analisa mitos, rituais e obras literárias de diversas culturas, identificando padrões recorrentes que comprovam sua teoria. Ele argumenta que o cristianismo, ao revelar a inocência da vítima e denunciar o mecanismo do bode expiatório, rompe com esse ciclo de violência e oferece um caminho para a reconciliação.

No cerne de sua teoria reside a figura de Jesus Cristo, o bode expiatório por excelência. Girard argumenta que Jesus, ao ser condenado e crucificado injustamente, revela a natureza sacrificial do mecanismo do bode expiatório e expõe a violência inerente à sociedade humana. 

A diferença crucial, no entanto, é que Jesus, diferentemente dos bodes expiatórios do passado, é inocente. 

Ele não cometeu nenhum crime, não representa nenhuma ameaça à ordem social, e sua morte é motivada unicamente pela inveja e pelo desejo mimético daqueles que o condenam. 

Ao se entregar voluntariamente ao sacrifício, Jesus quebra o ciclo de violência e oferece um novo modelo de relacionamento humano, baseado no amor, no perdão e na compaixão. 

Sua ressurreição, além de confirmar sua divindade, simboliza a vitória sobre a morte e a possibilidade de redenção para a humanidade. Girard argumenta que o cristianismo, ao revelar a inocência da vítima e denunciar o mecanismo do bode expiatório, abre caminho para uma nova era, onde a violência pode ser superada e a paz verdadeira pode ser alcançada.

Apesar da mensagem de amor e perdão do cristianismo, a humanidade ainda parece estar presa ao ciclo de violência e à busca por bodes expiatórios. 

Observamos, no mundo contemporâneo, inúmeros exemplos de indivíduos e grupos que são injustamente acusados, condenados e sacrificados em nome de interesses políticos, ideológicos ou simplesmente pela necessidade de encontrar um culpado para os problemas sociais. 

O caso do youtuber Monark, que foi demitido e teve seu canal cancelado após defender a liberdade de expressão para grupos neonazistas, ilustra como a cultura do cancelamento pode funcionar como uma forma moderna de linchamento virtual, onde indivíduos são condenados e excluídos sem direito à defesa ou ao devido processo legal. Temos um vídeo no canal falando sobre isso, se você ainda não viu corre lá para ver.

Também temos outro vídeo que fala sobre a Princesa Diana, amada pelo povo e odiada pela família real, e que foi alvo de uma constante perseguição midiática e acabou se tornando um bode expiatório para os problemas da monarquia britânica, culminando em sua trágica morte em um acidente de carro. 

O cancelamento, em sua essência, é a versão moderna da expiação do bode, um ritual de sacrifício público onde a multidão, sedenta por justiça, elege um alvo para purgar suas frustrações e ansiedades.

O caso mais recente é o do apresentador Tiago Leifert, que passou claramente por um processo de exposição infundada. Tiago queria debater exclusivamente sobre futebol e tinha a sensibilidade para discutir outros aspectos com sua convidada. Esta, porém, em uma aparente surdez seletiva, foi incapaz de compreender a posição do apresentador, que se tornou um alvo para toda a militância oposta.

O interessante de seu caso é que, a partir de uma fala distorcida sobre um caso específico, diversos outros momentos da vida dele foram pinçados a dedo para justificar que ali estava uma pessoa pronta para o linchamento social. A profissão de seu pai, seu posicionamento contra Jair Bolsonaro, sua postura leve e suas oportunidades, tudo virou munição contra ele próprio.

Esses casos, entre muitos outros, demonstram como o mecanismo do bode expiatório continua operante na sociedade contemporânea, alimentado por vícios como a inveja, o ressentimento, a intolerância e a busca por poder.

A necessidade de encontrar um bode expiatório parece estar profundamente enraizada na psique humana. 

Quando nos deparamos com crises, conflitos ou tragédias, a busca por um culpado se torna quase instintiva. 

O medo, a insegurança, a raiva e a frustração nos impelem a encontrar um alvo para nossa agressividade, alguém que possa ser responsabilizado pelos nossos problemas e punido em nosso nome. 

Essa necessidade de expiação se manifesta de diversas formas, desde o bullying nas escolas até os linchamentos virtuais nas redes sociais, passando pelas perseguições políticas e religiosas que ainda assolam o mundo. 

O caso de Monark, além de ilustrar a cultura do cancelamento, revela a intolerância e a polarização que dominam o debate público. A incapacidade de dialogar com aqueles que pensam diferente, o desejo de silenciar vozes dissonantes e a busca por punição exemplar criam um ambiente propício para a proliferação de bodes expiatórios. 

Girard argumenta que o mecanismo do bode expiatório se baseia na ilusão de que a violência sacrificial pode trazer paz e harmonia para a sociedade. Ao eliminar o culpado, acreditamos que estamos resolvendo o problema e restaurando a ordem. 

No entanto, essa solução é ilusória e temporária. 

A violência gera mais violência, e a busca por bodes expiatórios apenas perpetua o ciclo de sofrimento e conflito. 

A tragédia da Princesa Diana expõe a crueldade da mídia sensacionalista e a fragilidade daqueles que ocupam posições de poder. Diana, ao desafiar as convenções da realeza e se aproximar do povo, se tornou uma ameaça ao status quo e pagou com a própria vida por sua ousadia. 

Para quem ainda é muito novo para se lembrar do caso da princesa, eu trago outra questão deveras chocante: uma página de fofocas levantou um falso depoimento acerca da relação de Whindersson Nunes com uma menina normal, uma completa desconhecida, que não suportou a dureza e crueldade dos juízes virtuais e tirou sua própria vida.

Girard nos convida a romper com essa lógica sacrificial, reconhecendo a inocência da vítima e buscando soluções pacíficas para os conflitos sociais. Ele nos lembra que a verdadeira paz só pode ser alcançada através do diálogo, da compreensão mútua e do amor ao próximo.

Compreender o mecanismo do bode expiatório é essencial para desconstruirmos as narrativas simplistas que buscam atribuir culpa a indivíduos ou grupos específicos pelos males da sociedade. 

A demonização de figuras públicas ilustra como a mídia e as redes sociais podem ser utilizadas para construir narrativas de "bem contra o mal", onde o "mal" é personificado em um indivíduo que se torna alvo de ódio e perseguição.

Os casos utilizados neste texto como exemplo de bode expiatório demonstram como o mecanismo do bode expiatório é utilizado para manipular a opinião pública, desviar a atenção de problemas reais e perpetuar o ciclo de violência e polarização.

Girard nos alerta para o perigo de cairmos na armadilha da "mímesis", ou seja, da imitação irrefletida dos desejos e comportamentos dos outros. Quando nos deixamos levar pela "mímesis", perdemos nossa individualidade e nos tornamos presas fáceis para a manipulação. Ele nos convida a resistir à "mímesis", desenvolvendo nosso senso crítico e buscando a verdade por trás das narrativas simplistas e manipuladoras. Ele nos encoraja a questionar as "verdades" estabelecidas, a defender os inocentes e a buscar a reconciliação em vez da vingança.

A cultura do cancelamento, por exemplo, se alimenta da inveja e do ressentimento, permitindo que indivíduos sejam condenados e excluídos sem o devido processo legal, em nome de uma suposta justiça social.

Até aqui você talvez tenha pensado que esta é uma questão exclusivamente coletiva e social.

Ledo engano.

Já reparou que a culpa é sempre do outro? 

  • do chefe que não reconhece seu talento;

  • do colega que te sabotou;

  • do professor que te deu notas baixas;

  • do governo que não oferece oportunidades;

  • dos pais que não educaram direito;

  • do parceiro que não te faz feliz;

A lista de culpados é extensa, e a cada tropeço, a cada frustração, um novo nome é adicionado ao rol daqueles que impedem nossa ascensão, que boicotam nossa felicidade, que nos impedem de realizar nosso potencial.

Essa busca incessante por culpados externos revela um padrão de comportamento comum, uma fuga da responsabilidade que se manifesta em diferentes esferas da vida, do trabalho aos relacionamentos, da política à vida pessoal. 

É mais fácil atribuir a culpa aos outros do que encarar nossas próprias falhas, nossas escolhas erradas, nossas atitudes que contribuíram para o fracasso.

Essa fuga da responsabilidade se manifesta na procrastinação, no vitimismo, na reclamação constante, na incapacidade de aprender com os erros, na dificuldade de assumir compromissos. 

Mas essa fuga da responsabilidade tem um alto custo. 

Ela nos aprisiona em um ciclo de estagnação, impede nosso crescimento pessoal e profissional, e nos afasta da realização de nossos sonhos. Quando nos recusamos a assumir a responsabilidade por nossos atos, perdemos o poder de transformar nossa realidade, de aprender com nossos erros e de construir um futuro melhor.

Assumir a responsabilidade por nossos atos é um ato de coragem, de maturidade, de libertação. É reconhecer que somos os protagonistas da nossa própria história, que temos o poder de fazer escolhas, de tomar decisões e de construir nosso próprio destino. É libertar-se das amarras da culpa e do vitimismo, e assumir o controle da nossa própria vida.

É por isso que a superação do mecanismo do bode expiatório, segundo Girard, requer uma conversão individual e coletiva. 

É preciso renunciar aos vícios e fraquezas que nos tornam cegos à verdade e nos impedem de amar o próximo. É preciso resistir à mímesis e buscar a autonomia moral e intelectual. É preciso seguir o exemplo de Jesus Cristo, que nos mostrou o caminho do amor, do perdão e da compaixão. 

Girard nos convida a sermos "agentes de desmascaramento", revelando a inocência das vítimas e denunciando o mecanismo do bode expiatório. Ele nos chama a sermos "construtores de paz", promovendo o diálogo, a compreensão mútua e a reconciliação. Este é um verdadeiro guia para navegarmos pelos desafios do mundo contemporâneo, nos ajudando a compreender as raízes da violência e a construir uma sociedade mais justa e compassiva.

Vivemos em uma época marcada pela polarização, pela intolerância e pela proliferação de discursos de ódio. As redes sociais, com seu poder de amplificação e viralização, se tornaram um palco para linchamentos virtuais e campanhas de difamação. 

A busca por bodes expiatórios se intensifica em momentos de crise e incerteza, quando a sociedade se sente ameaçada e busca por respostas fáceis e culpados convenientes. 

Diante desse cenário desafiador, a obra de René Girard nos oferece ferramentas para compreender e superar o ciclo de violência e a busca por bodes expiatórios. 

Girard nos ensina a reconhecer os mecanismos da mímesis, a resistir à tentação da violência e a buscar a verdade por trás das narrativas simplistas e manipuladoras. 

O bode expiatório é um mecanismo social que se repete ao longo da história, assumindo diferentes formas e justificativas, mas sempre com o mesmo objetivo: canalizar a violência coletiva para um alvo específico, criando a ilusão de resolução de conflitos e restauração da ordem. 

A obra de René Girard nos ajuda a compreender as raízes da violência humana e a superar o ciclo de sofrimento e conflito. Ao revelar a inocência da vítima e denunciar o mecanismo do bode expiatório, Girard nos oferece um caminho para a construção de uma sociedade mais justa, compassiva e pacífica.