A Morte do Expertise

Não Confiamos Mais nos Especialistas

Queridos leitores,

Estava eu outro dia em uma consulta médica quando presenciei uma cena que se tornou tristemente comum: uma paciente, munida de dezenas de prints do Google e grupos do Facebook, tentava convencer o médico de que seu autodiagnóstico estava correto e que o tratamento proposto pelo profissional estava errado.

O médico, com décadas de experiência e inúmeras especializações, tentava pacientemente explicar por que aquelas informações da internet estavam incompletas ou incorretas. 

A paciente, no entanto, estava irredutível: 

"Mas eu pesquisei muito, doutor. O senhor precisa considerar estas alternativas que eu encontrei."

Esta cena, aparentemente trivial, esconde uma das transformações mais profundas e preocupantes de nossa era: a morte do expertise, ou como preferem alguns, a crescente desconfiança no conhecimento especializado.

Enquanto observava aquela cena no consultório, lembrei-me de uma antiga parábola hindu: a dos cegos e o elefante. 

Cada cego, ao tocar uma parte diferente do animal, fazia sua própria interpretação do todo. O que tocava a tromba achava que era uma mangueira, o que tocava a perna pensava ser um pilar, o que tocava a orelha imaginava um leque.

Não estamos todos, de certa forma, agindo como esses cegos? 

Cada um com seu pedaço de informação obtido na internet, achando que compreende o todo? 

A diferença é que, diferentemente dos cegos da parábola, nos recusamos a ouvir quem já viu o elefante inteiro.

A Era de Ouro do Expertise

Houve um tempo, não muito distante, em que a palavra de um especialista carregava peso quase absoluto.

Nas décadas de 1950 e 1960, cientistas eram vistos como heróis modernos, desbravando as fronteiras do conhecimento. 

Einstein era um ícone cultural. 

A corrida espacial capturava a imaginação do público. As universidades eram templos do saber, e seus professores, guardiões do conhecimento.

A mídia tradicional funcionava como uma ponte confiável entre estes especialistas e o público geral. 

Quando Walter Cronkite falava "E assim é", os americanos sabiam que podiam confiar naquela informação. 

Quando uma revista científica publicava uma descoberta, ela havia passado por um rigoroso processo de revisão por pares.

Era um mundo mais simples, alguns diriam. 

…talvez até mais ingênuo…

mas era um mundo onde existia uma hierarquia clara do conhecimento, onde a expertise era respeitada e valorizada.

Me pego às vezes relembrando as tardes na casa de meu avô, quando ele religiosamente assistia ao Jornal Nacional.

"Se o Cid Moreira falou, está falado"

dizia ele com uma convicção que hoje parece quase ingênua. Era um mundo diferente - não necessariamente melhor, mas certamente mais definido em suas hierarquias de conhecimento.

É como aquele velho provérbio japonês: 

"Nenhum de nós é tão sábio quanto todos nós juntos." 

O problema é que confundimos essa sabedoria coletiva com uma democracia do conhecimento onde todas as opiniões têm o mesmo peso.

A Democratização do Conhecimento

Então veio a internet. 

E com ela, uma revolução sem precedentes no acesso à informação.

De repente, todo o conhecimento humano parecia estar a um clique de distância. 

  • Queremos aprender física quântica? Tem vídeo no YouTube. 

  • Medicina chinesa? Tem curso online. 

  • Filosofia medieval? Tem podcast.

As redes sociais amplificaram ainda mais esse fenômeno. Hoje, qualquer pessoa com um smartphone pode se tornar um "especialista" instantâneo, conquistar seguidores e influenciar opiniões. 

O conhecimento, antes concentrado em instituições tradicionais, agora flui livremente por canais digitais.

Em teoria, isso deveria ser maravilhoso. 

Em teoria…

A democratização do conhecimento sempre foi um sonho da humanidade. Mas como em toda revolução, há consequências inesperadas.

A Origem da Desconfiança

Seria simplista culpar apenas a internet pela erosão da confiança nos especialistas. As raízes dessa desconfiança são mais profundas e complexas.

Primeiro, temos os próprios especialistas e instituições, que nem sempre se mostraram dignos da confiança depositada neles. Escândalos envolvendo pesquisas fraudulentas, conflitos de interesse não declarados, e a crescente mercantilização do conhecimento acadêmico minaram a credibilidade das instituições tradicionais.

A distância entre a torre de marfim acadêmica e a realidade cotidiana também contribuiu para esse fenômeno. 

Enquanto especialistas debatiam teorias abstratas em congressos internacionais, pessoas comuns lutavam com problemas práticos que pareciam ignorados pela academia.

A polarização política transformou o conhecimento científico em campo de batalha ideológico. 

De repente, até mesmo questões puramente técnicas, como a eficácia de vacinas ou a realidade das mudanças climáticas, tornaram-se temas de debate político acalorado.

O Dr. Google e a Ilusão do Conhecimento

O acesso fácil à informação criou um fenômeno curioso: quanto mais informação temos disponível, mais achamos que sabemos. 

É o que os psicólogos chamam de efeito Dunning-Kruger - quanto menos uma pessoa sabe sobre um assunto, mais ela superestima seu conhecimento sobre ele.

Ler alguns artigos no Wikipedia não equivale a anos de estudo especializado. 

Ver vídeos sobre física quântica não nos torna físicos. 

Mas a facilidade de acesso à informação cria essa ilusão de expertise.

É como se tivéssemos confundido o cardápio com a refeição. 

Ter acesso à informação não é o mesmo que ter conhecimento. Conhecimento requer contexto, compreensão profunda, capacidade de análise crítica e, principalmente, humildade para reconhecer os próprios limites.

Como diria Umberto Eco: "As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis que antes falavam só no bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel."

É uma observação ácida, talvez até elitista, mas que toca em um ponto crucial: não é a democratização do conhecimento que é o problema, mas a ilusão de que todo conhecimento tem o mesmo valor.

A Pandemia como Caso de Estudo

A pandemia de COVID-19 foi um momento revelador nesse contexto. 

De repente, todos viramos epidemiologistas amadores. Termos técnicos como "curva de contágio", "imunidade de rebanho" e "eficácia vacinal" entraram no vocabulário cotidiano.

Vimos médicos defendendo tratamentos sem evidência científica. Vimos pessoas comuns desafiando o consenso científico com base em "pesquisas" no Google. Vimos teorias conspiratórias se espalhando mais rápido que o próprio vírus.

Foi um momento que expôs brutalmente tanto a importância do conhecimento especializado quanto nossa crescente resistência a ele. Enquanto cientistas corriam para desenvolver vacinas em tempo recorde, uma parcela significativa da população se recusava a tomá-las com base em "pesquisas" feitas no WhatsApp.

Me lembro de uma cena do filme "Não Olhe para Cima", onde cientistas tentam alertar o mundo sobre um cometa em rota de colisão com a Terra, apenas para serem ignorados por políticos e influenciadores que têm suas próprias "teorias alternativas". 

A sátira é dolorosamente próxima da realidade que vivemos durante a pandemia.

Como diria Neil deGrasse Tyson: "O bom da ciência é que ela é verdadeira, acredite você nela ou não."

…até que se prove o contrário.

Quando perdemos a capacidade de concordar sobre fatos básicos, quando cada um vive em sua própria realidade alternativa, o diálogo se torna impossível e a democracia se fragiliza.

A Bolha dos Algoritmos

As redes sociais e seus algoritmos têm um papel crucial nesse cenário. 

Eles nos entregam exatamente o que queremos ver, criando câmaras de eco onde nossas crenças são constantemente reforçadas.

Se você acredita que vacinas são perigosas, o algoritmo te mostrará mais conteúdo anti-vacina. Se você desconfia da ciência climática, receberá mais posts com o mesmo ponto de vista. É um ciclo que se auto-alimenta, tornando cada vez mais difícil o contato com visões diferentes.

Além disso, existe uma verdadeira economia da desinformação. 

Fake news e teorias conspiratórias geram engajamento, e engajamento gera receita. 

É um modelo de negócio perverso que prospera com a erosão do conhecimento especializado.

O Paradoxo da Especialização

Ironicamente, vivemos em um mundo que nunca precisou tanto de especialistas. Os desafios que enfrentamos - das mudanças climáticas à inteligência artificial - são extremamente complexos e requerem conhecimento profundo e especializado.

No entanto, é exatamente quando mais precisamos de expertise que mais desconfiamos dela. 

É como se estivéssemos jogando fora a bússola justamente quando se torna mais difícil navegar.

O desafio é encontrar um equilíbrio entre o conhecimento especializado e a sabedoria popular, entre o ceticismo saudável e a confiança necessária nas instituições do conhecimento.

Reconstruindo Pontes

Como podemos recuperar a confiança no conhecimento especializado sem cair no elitismo intelectual? Algumas sugestões:

  1. Maior transparência no meio acadêmico, com comunicação clara sobre métodos, limitações e conflitos de interesse.

  2. Melhor comunicação científica, que reconheça as preocupações e experiências do público leigo.

  3. Educação para mídia e pensamento crítico desde o ensino fundamental.

  4. Reconexão entre academia e sociedade, com mais diálogo e menos arrogância intelectual.

  5. Desenvolvimento de plataformas digitais que privilegiem informação de qualidade sobre sensacionalismo.

O Futuro do Conhecimento

Talvez precisemos resgatar aquilo que o filósofo Nicolás Gómez Dávila chamava de "aristocracia do espírito" - não uma elite baseada em títulos ou posições, mas uma que se fundamenta no compromisso genuíno com o conhecimento e a verdade.

O conhecimento especializado não pode ser um monopólio de uma elite intelectual, mas também não pode ser reduzido a opiniões no Twitter. 

Precisamos encontrar um novo equilíbrio.

Talvez a solução esteja em uma nova humildade - tanto dos especialistas quanto do público geral. 

Os especialistas precisam reconhecer as limitações e incertezas de seu conhecimento. O público precisa desenvolver um ceticismo saudável sem cair no cinismo total.

Em um mundo cada vez mais complexo, precisamos mais do que nunca de expertise. Mas precisamos também de sabedoria para usar esse conhecimento de forma produtiva e ética.

Um abraço, Eumismo

P.S.: E você, já parou para pensar em como mudou sua relação com o conhecimento especializado nos últimos anos? Como equilibra a conveniência do Dr. Google com o respeito pelo conhecimento profundo? Vamos construir juntos um diálogo sobre esse tema tão crucial para nosso futuro.